quarta-feira, março 14, 2012

O rio

Quando o rio nasceu, saiu da terra a cantar uma melodia fresca num improviso acidentado.

Desceu a montanha entre pedras, galhos e solo, maravilhado com a terra onde se infiltrava, feliz.

O rio era pequeno e achava que o mundo se limitava ao sítio que o rodeava.

Entranhou-se no chão, seguindo o seu rumo enrolado com a terra. O rio amava a terra da sua nascente e achava que poderia morrer ali de felicidade.

Entrou na terra e a sua água fê-la viver, crescendo e colorindo-se de diferentes tons de verde, castanho, e depois amarelo, vermelho, cor-de-rosa e azul. O rio entrou na terra e os animais celebraram construindo as suas casas perto, brincando nas margens.

Mas a terra da nascente não chegava ao rio que continuava a crescer. E à medida que mais água jorrava da nascente cantante, o rio continuou a espalhar música e vida pelo seu caminho, alcançando mais chão à medida que a saciava.

No seu caminho o rio encontrou outos rios que o acompanharam e se fundiram com ele até serem um só. Queriam fazer parte dele, ir com ele naquela viagem.

E à medida que crescia, a sua voz parecia mais calada, até que o rio já não cantava, murmurava entre as múltiplas vozes dos afluentes que o compunham, em constante espanto com o mundo que abarcava.

Quanto mais crescido, mais encantado com a música e as histórias dos outros. Quanto maior o rio mais silencioso e mais murmurante, mais ávido de outros universos além do seu. O rio percebeu cedo que só através dos outros - dos outros elementos, dos outros afluentes, dos outros seres - é que ele crescia e ganhava significado. E por isso o rio era muito grato e muito dado àqueles que partilhavam a viagem consigo.

Mas vida do rio nem sempre foi fácil.

O rio crescera e não era mais apenas o fruto da fonte selvagem que brotava água do centro da terra. O rio cresceu e começaram a fazer parte de si as águas da chuva e as águas dos outros rios.

Quando não chovia, o rio não tinha água suficiente para continuar o seu caminho, não conseguia continuar e por seu turno a terra amarelecia de saudades e ficava com rugas de velhice antecipada no lugar onde era o seu caudal ressequido.

Mas o rio existia para além daquilo que lhe quisessem dizer e para além dos obstáculos. O rio esperava pela chuva e, mal podia, corria feliz e sôfrego, a inundar as paragens que lhe tinham ficado vedadas, abraçando a terra saudosa que fazia novamente brotar de verde e outras cores.

O rio gostava de correr pela terra, romper as rochas, descer e subir as montanhas, circundar as árvores e os pedaços de terra fazendo ilhas. Rodopiar entre as curvas da montanha, rápido e lento, seguro e violento.

Gostava de transportar os barcos, de ser ele mesmo uma nave que transporta outras naves.

O rio corria feliz e sabia que havia algum propósito na sua existência. O rio corria para correr. Pelo prazer de existir. E a sua vida fazia sentido.

Mas o rio não se esgotava na terra que regava e em que vivia entranhado. E quando já era muito grande, chegou a uma cidade sedenta que vivia triste por não ter um rio.

Quando chegou, o rio inundou a cidade como se a quisesse conhecer, pouco a pouco, fio de água por fio de água.

O rio amava a cidade e gostava de a pintar de dourado nos fins de tarde, de cinzento nos dias de chuva, de prateado nas manhãs de nevoeiro. Prolongava a sua existência colorida, fotocopiando as suas cores numa aguarela profunda todos os dias.

As aves sobrevoavam o rio e alimentavam-se dos peixes que viajavam e viviam nele. Brincavam com ele, fazendo nuvens que se movimentavam em tons de branco ora mais denso, ora mais espaçado na dança que as aves fazem quando estão enamoradas.

Quando o rio chegou à cidade, que tanto o aguardara houve muitos festejos e felicidade. As pessoas fizeram os céus florescer com fogos-de-artifício e tocaram música toda a noite. Assavam sardinhas e fêveras nas ruas que partilhavam com todos os que passavam, enquanto bebiam vinho novo e sangria.

Colocavam colchas nas janelas para embelezarem as casas e as meninas vestiam os seus vestidos melhores, de sair ao domingo.

As pessoas abraçavam-se nas ruas, dançavam e faziam barquinhos de papel colorido que colocavam na água para que o rio pudesse brincar com eles também. Acenderam balões de S. João que desmaiavam e caiam no rio, testemunhas de uma alegria que queria voar e iluminar a noite toda, porque a felicidade traz luz à escuridão mais recôndita.

As pessoas tinham esperado muito pelo rio e ele era exactamente como elas tinham sonhado.

E o rio sentia-se muito amado e feliz.

O rio trouxe muita riqueza à cidade, com os barcos que transportavam pipas de vinho para as caves que se tornaram famosas, com mercadorias, com os desportos de água que as crianças e os jovens imortalizavam no seu leito, brincado consigo, suando e crescendo, aprendendo com rio que a vida é feita de conquistas e que as maiores são as conquistas de nós mesmos connosco próprios.

No verão, as crianças saltavam para a sua água para nadar, improvisando embarcações com bóias coloridas.

E o rio tornou-se também num conselheiro e num patrono. Casais de namorados iam admirá-lo e davam as mãos, entrelaçando os dedos perante a emoção da beleza da paisagem. Mães desesperadas choravam nas suas margens. Pessoas infelizes procuravam consolo nos seus murmúrios, tentando perceber o sentido da sua vida no sentido do rio.

Algumas pessoas tristes queriam tanto ter um sentido como o próprio rio, que se lançavam das pontes para o seu leito, encontrando aí a morte ou a salvação.

O rio amava a cidade e a cidade amava o rio, mas mesmo sem o querer admitir, ele sabia que tinha de continuar a correr, porque era essa a sua natureza, mesmo se já não havia mais terra para onde se estender.

Nem a cidade que o rio amava era suficiente para conter a sua natureza, para suportar toda a sua água.

Um dia, o rio ouviu outras águas cantarem uma música diferente da sua e lembrou-se que quando era muito jovem gostava de cantar e cantava todos os dias como uma menina feliz ao sair da terra. O rio avançou a medo porque não sabia o que era aquela canção, mas não lhe conseguia resistir, como se toda a sua vida tivesse sido uma viagem com um propósito, e o propósito estivesse tão perto.

O rio aproximou-se da outra água e o mar perguntou-lhe se ele queria conhecer o mundo e cantar com ele para sempre.

O rio pensou na cidade e achou que não era capaz de sair daí, ainda que nada mais quisesse na vida do que seguir a sua natureza e tornar-se parte de algo maior, as suas águas misturadas no mar em viagens por paragens distantes.

O mar sorriu perante a nobreza do rio que se dispunha a sacrificar o seu sonho por todos os que tanto o amavam. Baixou a sua voz e contou-lhe um segredo: para chegar ao mar, o rio tinha de passar por todas as paragens de onde era. Para viajar no mar, o rio havia sempre de continuar a ser a fonte, o ribeiro, o rio pequeno e depois o grande rio. Nunca deixamos de ser quem fomos, e nunca deixamos os que amamos. Por muito mar que atravessasse e preenchesse, o rio nunca deixaria de ter sido o rio que fecundou a terra, que rompeu as rochas, que abraçou as ilhas, que regou as uvas, que transportou os barcos e que viveu na cidade mais bonita do mundo.

O rio olhou para o seu percurso e sentiu-se longo, pesado e contido. Tinha medo que o mar o levasse e lhe roubasse a terra que tanto amava, a cidade que preenchia.

Fechou os olhos e respirou fundo, calando toda a terra e o mar com o seu suspiro sentido.

Muito lá ao longe, ouviu-se cantar na sua fonte e percebeu que o mar tinha razão. Ele era quem sempre fora, e se era quem era agora, devia-o ao seu percurso; independentemente dos sonhos que agora tinha.

Lembrou-se dos estendais de roupa e da vida das pessoas que passava nas suas margens, o bebé que a mãe lava no rio que é depois uma menina de vestido branco que é depois uma jovem que aprende a ler perto do rio, que se enamora, que casa, que lava a roupa no rio, que lava os seus bebés que choram no rio, que envelhece à beira do rio, e que se enruga e veste preto ao lado da filha que fora bebé e que lava os seus bebés no rio, no constante ciclo da vida. E o rio sempre constante nas suas vidas e a vida que continua a correr porque a mulher é só uma das muitas criaturas que vivem do rio e que o fazem viver para mais do que correr sem parar e sem fôlego.

Sempre diferente e sempre igual, nas cascatas, nos remoinhos, nos rápidos, nas paisagens imponentes, nas vinhas.

Estendeu uns fios de água ao mar, um pouco a medo, como se lhe desse a mão. O mar segurou-o com delicadeza e abraçou-o como se também ele tivesse esperado muito tempo pelo rio e quisesse mostrar-lhe o mundo de que tanto lhe falara, em todas as vezes que cantara para ele.

Passearam juntos pelo mundo, mudando e mudando-se, sem nunca terem deixado de estar no sítio onde sempre haviam estado, onde se conheceram e se enamoraram.

1 comentário:

rvs disse...

Estou sem palavras! Talvez porque na minha constituição há mais água do terra e talvez por saber que corro no sentido do rio, sem nunca esquecer por onde já passei, quem já amei!